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HISTÓRIA

 

Pau Brasil:
três décadas de música instrumental brasileira  

CARLOS CALADO 

Introdução

No futuro, quando algum pesquisador tomar para si a essencial tarefa de narrar e analisar a história da música instrumental brasileira, certamente dedicará um capítulo dessa obra ao grupo Pau Brasil. Nada mais justo: a exemplo de outros expoentes desse gênero musical que o precederam, como o Tamba Trio e o Zimbo Trio, ou de grupos liderados por grandes compositores e improvisadores ainda na ativa, felizmente, como Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, o Pau Brasil tornou-se uma referência para várias gerações de apreciadores e músicos.

 

Nas gravações reunidas nesta caixa, realizadas ao longo das últimas três décadas, é fácil perceber como a obra do Pau Brasil reflete, com personalidade, as inquietações estéticas e as transformações sonoras da moderna música instrumental produzida no país – gênero que alguns preferem chamar de jazz brasileiro. Em suas diversas formações, o Pau Brasil sintetizou a busca por uma música essencialmente brasileira e moderna, que utiliza a improvisação sem recorrer aos clichês ou aos standards do jazz norte-americano. Para isso, seus integrantes buscaram novas formas musicais, criando um repertório próprio e original.

 

O reconhecimento da importância desse grupo musical de São Paulo, tanto pela crítica especializada, como pelo público, foi imediato. Seu álbum de estreia, “Pau Brasil” (1983), recebeu elogios dos principais órgãos da imprensa nacional, assim como suas gravações posteriores. Sucesso que logo se estendeu à Europa, onde o grupo realizou extensas turnês anuais pelos principais clubes de jazz e festivais de música, além de apresentações nos Estados Unidos e no Japão, exportando o que há de melhor na música instrumental brasileira. E hoje, com uma bagagem musical ainda mais ampla e diversificada, o Pau Brasil segue ativo e criativo, com o mesmo bom humor que sempre o identificou.

São Paulo: uma efervescente cena musical

No final da década de 1970, o circuito musical de São Paulo era bem mais restrito, se comparado ao grande número de instituições culturais, teatros, clubes noturnos e bares que hoje mantêm uma programação regular de concertos e espetáculos musicais nessa metrópole, a maior da América Latina. No entanto, mesmo que o número de palcos ainda fosse reduzido, naquela época, a cidade desfrutou uma fase de grande efervescência musical.

 

“Estávamos vivendo um período de transição, ainda nos livrando da ditadura militar”, relembra Marlui Miranda, que despontou naquele período como cantora, compositora e instrumentista e, já na década de 1990, se tornou integrante do Pau Brasil. “Quando saímos daquele fosso, muitas manifestações brotaram com uma força enorme. As pessoas já podiam pensar com mais liberdade. Assim todo o pensamento criativo da música brasileira começou a se expandir”.

 

Os espaços que programavam música instrumental e jazz, em São Paulo, eram tipicamente alternativos, com ingressos acessíveis ao público, formado em grande parte por estudantes universitários. Esse circuito incluía a Sala Guiomar Novaes da Funarte (Fundação Nacional das Artes), o auditório do MASP (Museu de Arte de São Paulo) e o Teatro Lira Paulistana, o mais alternativo desses espaços, com seu palco instalado em um porão, no bairro de Pinheiros. Já nos primeiros anos da década de 1980, outros dois espaços recém-inaugurados e melhor equipados ampliaram esse circuito: o Centro Cultural São Paulo e a unidade do SESC (Serviço Social do Comércio), no bairro da Pompéia.

 

“Naquela época havia uma classe universitária bem culta, alunos da USP (Universidade de São Paulo) e da PUC (Pontifícia Universidade Católica), que iam mesmo ver e ouvir as coisas”, recorda o saxofonista Teco Cardoso, que antes de ingressar no Pau Brasil, em 1988, já frequentava há muito tempo essa cena musical, tocando em conhecidos grupos de música instrumental, como o Pé Ante Pé e o Zonazul. “Essas pessoas eram ligadas em experimentação, ouviam Cage, Stockhausen. Eu mesmo fiz sons radicais com o pianista Felix Wagner, no auditório do MASP, em diversas formações”, ele recorda.

Um festival deflagrador

Para os músicos e apreciadores do jazz e da música instrumental brasileira, o ano de 1978 é um verdadeiro marco histórico. A realização do 1º Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em parceria com o suíço Montreux Jazz Festival, no Palácio das Convenções do Anhembi, mostrou que o país tinha potencial para realizar um grande evento do gênero. Esse festival deflagrou a formação de uma nova e crescente plateia, que logo adotou essa vertente musical.

 

“O que ficou provado, principalmente ao público brasileiro, pouco acostumado a presenciar espetáculos de música deste tipo, é que o jazz se transformou em rótulo de música de qualidade, independente de ritmos, harmonizações e improvisações, sejam elas quais forem”, apontou uma extensa reportagem sobre o evento, na revista semanal “Veja” (edição de 20/09/1978), assinada por Décio Bar, Regina Echeverria e Tárik de Souza.

 

A programação desse pioneiro festival já refletia a ascendente cena da música instrumental produzida no país, naquele momento. No palco principal, ao lado de astros internacionais do jazz, como Dizzy Gillespie, Al Jarreau, George Duke, Larry Coryell & Philip Catherine, Ahmad Jamal, Stan Getz, Chick Corea e John McLaughlin, lá estavam Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Victor Assis Brasil, Paulo Moura, Luiz Eça, grupo Azymuth, Raul de Souza, Wagner Tiso e Marcio Montarroyos.

 

O grupo Pau Brasil ainda não existia com esse nome, embora alguns de seus fundadores já tocassem juntos. Três deles, inclusive, participaram do primeiro festival no Anhembi, em outras formações. O pianista Nelson Ayres se apresentou ao lado do veterano saxofonista norte-americano Benny Carter, na noite de abertura. E na mostra paralela, só com atrações brasileiras, o contrabaixista Rodolfo Stroeter e o baterista Azael Rodrigues tocaram com o Pavilhão A, grupo de vida breve que destacava a guitarra elétrica do lendário Lanny Gordin.


“Ensaiávamos sair dos anos de chumbo, com a lenta abertura política do país. Respirava-se uma necessidade de expressão novamente. Muita gente pensou que esse festival nem iria acontecer. Não só aconteceu como foi um sucesso”, relembra Rodrigues, que na segunda edição desse mesmo festival, em 1980, apresentou-se com o grupo instrumental Divina Increnca, ao lado de Stroeter e de Roberto Sion, saxofonista convidado.

A primeira formação

Nelson Ayres já era um pianista admirado, na cena jazzística de São Paulo, em 1969, quando decidiu aprimorar sua formação musical nos Estados Unidos. Tinha 22 anos, ao desembarcar em Boston, para frequentar o curso de arranjo e composição da disputada Berklee School of Music. “Fui o primeiro aluno brasileiro na Berklee, descontando o Victor (Assis Brasil), que nunca ia à escola”, ele lembra, referindo-se ao amigo saxofonista.

 

Ao retornar ao Brasil, no final de 1972, Ayres foi procurado por alguns colegas, interessados em que ele transmitisse um pouco do que aprendera em Boston. Para isso organizou um curso de arranjo, na escola Pró Arte. A animação dos alunos foi tamanha que, pouco depois, nascia a Nelson Ayres Big Band, formada por alguns dos melhores instrumentistas de São Paulo na época, como Bolão, Lambari, Buda, Edson Alves, Roberto Sion e Hector Costita, entre outros.

 

Precursora das melhores big bands paulistanas de hoje, como a Banda Mantiqueira ou a Soundscape Big Band Jazz, a banda de Nelson Ayres se manteve ativa durante cerca de oito anos, geralmente se apresentando no clube Opus 2004, às segundas-feiras. No entanto, como se sabe, manter uma big band em atividade regular é uma tarefa complicada, em qualquer lugar do mundo.

 

“Se uma big band tem 18 músicos, você enfrenta 18 problemas”, comenta o ex-líder. “Você tem que escrever os arranjos, fazer as cópias, carregar as partituras e montar as estantes. Como naquela época havia muitas gravações, era raro ver a banda tocando com a formação original – sempre aparecia um substituto. Depois de alguns anos, esse negócio começou a pesar. Resolvi parar por um tempo”.

 

 O desgaste com a big band não comprometeu a vontade de tocar. Com esse objetivo, Ayres decidiu formar um trio, em 1978. “Em vez de continuar tocando com profissionais mais velhos, tive a ideia de pegar uns moleques que ainda estavam começando na profissão, mas que tivessem garra, todo o tempo do mundo para ensaiar e que trouxessem informações novas. Assim apareceram o Rodolfo e o Azael”.


Na época com apenas 19 e 22 anos, respectivamente, o baixista e o baterista já exibiam seus talentos precoces na cena musical paulistana. Ao lado do pianista Félix Wagner, os dois eram integrantes do vanguardista trio Divina Increnca. Stroeter era aluno do conceituado Zeca Assumpção, contrabaixista da big band de Nelson Ayres. Rodrigues cursava música na Universidade de São Paulo, onde veio a conhecer os músicos do irreverente grupo Premeditando o Breque, com o qual também tocava.


Foi no bar Lei Seca, no bairro de Santo Amaro, que o recém-formado trio de Ayres conseguiu seu primeiro trabalho regular. “Era um bar moderno, o primeiro de São Paulo com cartão de consumo e gente jovem servindo as mesas”, recorda Roberto Sion, que pouco tempo depois foi convidado a ampliar o grupo – da mesma geração de Ayres, os dois eram amigos desde a década de 1960, época em que começaram a tocar juntos. “Era uma troca. Nós trazíamos a experiência, Rodolfo e Azael entravam com a energia. Fazíamos um som bem jovem naquele bar”, conta o saxofonista.

Brasilidade

O Nelson Ayres Quarteto ficou cerca de dois anos em cartaz, no bar Lei Seca, tocando às quintas-feiras. Na época, o grupo ensaiava com frequência, na casa do líder, às margens da represa de Guarapiranga. O repertório inicial ainda refletia, basicamente, a experiência de Ayres nos Estados Unidos: standards do jazz, como “Angel Eyes” (de Matt Dennis) e “Forest Flower” (Charles Lloyd), ou uma versão jazzística do hit pop “Isn’t She Lovely” (Stevie Wonder). Tempos depois, após algumas “canjas” no Lei Seca, o saxofonista Hector Costita também foi convidado a fazer parte do grupo.

 

Progressivamente, o repertório foi se tornando mais autoral, além de se aproximar mais da diversidade rítmica da música brasileira. O quinteto passou a tocar composições de Ayres, Sion e Costita, gravadas nos álbuns individuais que os três lançaram pelo selo Som da Gente, em 1981, além de um arranjo do clássico samba “Na Baixa do Sapateiro” (de Ary Barroso), idealizado por Ayres, que logo se tornou um dos números mais aplaudidos nos shows do grupo.

 

“Procurar um repertório mais autoral e brasileiro era uma coisa natural naquela época, um impulso geracional”, reflete Rodolfo Stroeter, autor da ideia de batizar o quinteto de Pau Brasil. Esse termo tinha duplo sentido: deu nome a uma árvore encontrada no país, cuja madeira (hoje rara) foi bastante comercializada durante o período colonial; também batizou um manifesto poético (“Manifesto da Poesia Pau-Brasil”), que o escritor modernista Oswald de Andrade lançou em 1924. “Sempre li muito. Na época, até fiquei dividido entre fazer música ou estudar Letras. Eu adorava as obras do Oswald e do Mário de Andrade. Como o movimento modernista não tinha ainda uma representação musical, eu achava que a gente devia fazer algo assim”.

 

Contar com “Brasil” no nome do grupo também poderia funcionar como um recurso mercadológico. Naquela época já havia consenso entre os cinco integrantes de que, a exemplo de Hermeto Pascoal ou Egberto Gismonti, o Pau Brasil tinha potencial para desenvolver sua carreira fora do país. Assim como Ayres, Sion e Costita, os mais experientes no grupo, já haviam se apresentado diversas vezes nos Estados Unidos, Stroeter fez sua primeira turnê de shows pela Europa com o Symmetric Ensemble, que incluía os tecladistas Lelo Nazario e Félix Wagner, em fevereiro de 1981.

 

“Pau Brasil era um nome interessante também por causa de nossa intenção de exportar a música brasileira”, comenta Stroeter. “O único problema é que, em alguns lugares da Europa, às vezes entendiam ‘Paul Brasil’, como se fosse o nome de alguém do grupo. Aí perguntavam pra gente: “Qual de vocês é o Paul?”, diverte-se o contrabaixista.

Enfim um violão

Paulo Bellinati já era fã de Nelson Ayres e Roberto Sion, quando foi para a Suíça, em 1975, estudar violão clássico no Conservatório de Genebra. “Cheguei lá com 24 anos, pensando em me tornar um músico erudito, mas essa pretensão durou poucos meses”, relembra. “Logo entendi que o negócio era me dedicar à música do Brasil. Então comprei uma guitarra e saí tocando”.

 

Dois anos mais tarde, o grupo instrumental de Bellinati já era bem conhecido na Suíça, com seu repertório de música brasileira, em grande parte autoral. A experiência acumulada durante quase uma década, tocando em conjuntos de baile pelo Brasil, especialmente em capitais do Norte e do Nordeste, permitiu que o violonista paulistano conhecesse a fundo e “in loco” ritmos populares e manifestações folclóricas, como o maracatu, o frevo ou o bumba-meu-boi.

 

“Eu já estava pesquisando a música brasileira, naquela época, sem perceber. Só na Europa fui descobrir o quanto conhecia tudo aquilo”, comenta Bellinati, que, de certo modo, começou a criar no exterior algo que seus futuros colegas do Pau Brasil também iriam buscar alguns anos depois: um repertório próprio de música instrumental brasileira. Porém, apesar do sucesso de seu grupo na Suíça, Bellinati começou a sentir que faltava algo naquela música. “Para mim, um maracatu tem que ser tocado direitinho. Assim como os brasileiros desaprendem a falar português corretamente, quando vivem na Europa por muito tempo, a música também pode ficar cheia de sotaque”.

 

Pouco depois de retornar definitivamente a São Paulo, no início de 1981, Bellinati foi a um concerto do Pau Brasil, na Sala Guiomar Novaes. Além de ouvir o grupo pela primeira vez, pôde enfim conhecer Rodolfo Stroeter pessoalmente. Isso não acontecera semanas antes por pouco: embora tivesse sido responsável pelo convite que o Symmetric Ensemble recebeu para tocar na Suíça, quando a turnê europeia do grupo aconteceu, o violonista acabara de voltar ao Brasil.

 

Tempos depois, os músicos do Pau Brasil retribuíram a visita: foram ao bar Penicilina para ouvir Bellinati, que já estava tocando guitarra no grupo do contrabaixista Nico Assumpção. Nem é preciso dizer que gostaram: numa ocasião em que o saxofonista Hector Costita não pôde participar de um show do grupo, Bellinati foi chamado para substituí-lo. E quando o argentino comunicou que iria deixar o Pau Brasil para comandar a big band do 150 Night Club, no Maksoud Plaza Hotel, o guitarrista e violonista foi convidado a entrar de vez no quinteto.


“Eu ainda era bem jazzista quando retornei ao país. Minha guitarra estava em ponto de bala, mas, com o tempo, eu e o Rodolfo, principalmente, fomos puxando o grupo para mais perto do Brasil. Aliás, um dos primeiros presentes de aniversário que o Rodolfo me deu foi o livro ‘Macunaíma’, do Mário de Andrade”, relembra Bellinati, que contribuiu ativamente com suas composições e cordas para que o grupo Pau Brasil encontrasse a brasilidade musical que buscava.

Lira Paulistana

A memória de Rodolfo Stroeter nem sempre é precisa, quando se refere aos primeiros tempos do Pau Brasil. Algo bem compreensível, já que durante cerca de dois anos, no início da década de 1980, ele era também o contrabaixista de outros dois inventivos grupos instrumentais de São Paulo: o trio Divina Increnca e o quinteto Grupo Um. Chegou mesmo a se apresentar com os três, numa mesma noite, na Casa Thomas Jefferson, em Brasília.

 

“Cada um desses grupos fazia uma música diferente da música dos outros, com uma postura também diversa. O Pau Brasil sempre teve uma comunicação mais direta com a plateia. A conexão entre os músicos do grupo passava facilmente do palco para o público”, compara Stroeter, observando que, apesar das bagagens musicais diferentes, ele e seus parceiros do Pau Brasil tinham o mesmo objetivo musical.

 

“O caminho que queríamos seguir era o de uma música instrumental com linguagem e personalidade brasileiras, na qual cada um dos componentes do grupo pudesse contribuir com a sua capacidade criativa. Essa sempre foi uma marca do Pau Brasil, independentemente da autoria das composições. Isso tinha a ver com a atitude antropofágica do grupo: o material musical era misturado dentro do grupo. Pouca coisa chegava pronta”, observa o contrabaixista.

 

Nessa fase, um dos palcos musicais de São Paulo, em que o Pau Brasil contava com um público fiel, era o alternativo Lira Paulistana. Instalado no porão de uma antiga loja de móveis, na rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, ele contava com apenas 200 lugares em sua nada confortável arquibancada de madeira. Mas a descontração do local, os ingressos a preços bastante acessíveis e a programação afinada com as últimas tendências musicais permitiram que o Lira Paulistana, inaugurado em outubro de 1979, se tornasse o polo aglutinador de uma inquieta e inovadora geração musical.

 

Rotulada pela imprensa de Vanguarda Paulista, essa geração tinha como expoentes, na área da canção, grupos como Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Sossega Leão, compositores como Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé (cuja banda Sabor de Veneno não chegou a se apresentar no Teatro Lira Paulistana porque o palco era pequeno demais para comportá-la), além de cantoras como Eliete Negreiros, Tetê Espíndola, Neuza Pinheiro, Vania Bastos, Suzana Salles, Virginia Rosa e Ná Ozzetti.

 

Embora esses nomes sejam os mais lembrados até hoje, quem teve a sorte de frequentar o Lira Paulistana (assim como a Sala Guiomar Novaes da Funarte, o auditório do Masp ou o Centro Cultural São Paulo), sabe que, praticamente, as mesmas plateias que acompanhavam os shows desses grupos e artistas citados acima também aplaudiam as apresentações de uma nova geração de grupos de música instrumental produzida em São Paulo, como o D’Alma, o Pé Ante Pé, o Freelarmônica, a Banda Metalurgia, o Acaru, o Alquimia, o Papavento, o Syncro Jazz e os já mencionados Grupo Um e Divina Increnca, além do Pau Brasil.


Não foi por outra razão que, quando o idealizador e produtor do Lira Paulistana, Wilson Souto Jr. (mais conhecido como Gordo), começou a produzir shows para públicos mais amplos, em locais abertos, ou mesmo em cidades do litoral paulista, o Pau Brasil fazia parte do elenco. Como no Música Instrumental na Praça, show realizado em março de 1982, que reuniu cerca de 2 mil pessoas na praça Benedito Calixto (em frente ao Lira Paulistana), para ouvir os grupos Pau Brasil, D’Alma, Pé Ante Pé e Acaru. E quando Gordo decidiu criar o selo Lira Paulistana, para registrar e divulgar, de forma independente, os trabalhos musicais dessa geração musical de São Paulo, o Pau Brasil também foi convidado a gravar seu primeiro álbum.

Na Europa

Gravar um disco, na década de 1980, sem as mesmas facilidades tecnológicas de hoje, era algo bem mais difícil e dispendioso. Tanto que, antes mesmo de entrar em um estúdio para fazer seu primeiro álbum, o Pau Brasil conseguiu realizar uma bem sucedida turnê pela Europa. O convite inicial partiu do jazzófilo André Francis, produtor da Rádio France e diretor do Paris Jazz Festival. O francês conhecera Nelson Ayres, no início de 1982, durante o Midem (Mercado Internacional do Disco e Edições Musicais), em Cannes, onde o pianista foi representar o selo independente Som da Gente, pelo qual lançou “Mantiqueira”, seu segundo álbum como solista.

 

Além de se apresentar no conceituado festival francês, ao lado dos grupos brasileiros Medusa e D’Alma, nessa viagem o Pau Brasil também fez temporadas em clubes de jazz de Paris e Toulouse, assim como se apresentou na sede da Association Pour la Musique de Recherche, em Genebra, na Suíça. “Uma música que digeriu a influência do jazz sem perder sua identidade”, elogiou Philippe Lesage, no diário parisiense “Le Matin”, em sua crítica sobre o concerto do grupo no Paris Jazz Festival, em outubro de 1982. Sempre bem humorado, Nelson Ayres ainda se lembra da sensação ao ver o grupo brasileiro ser aplaudido em Paris, ao lado de respeitados nomes no jazz internacional. “Naquela noite, caiu a nossa ficha: se estávamos ali, o Pau Brasil devia ser legal”.

 

Meses depois, em 11 de março de 1983, os principais jornais da capital paulista noticiaram uma temporada do grupo, no Centro Cultural São Paulo, durante o final de semana. Nesses concertos, o Pau Brasil oferecia uma prévia do repertório de seu LP de estreia, que acabara de gravar pelo selo Lira Paulistana. Com exceção do arranjo de “Na Baixa do Sapateiro” (Ary Barroso), já conhecido pelos fãs, todas as composições restantes eram de autoria dos músicos do grupo, como “Azas nos Ayres” (de Azael e Ayres), “Jongo” (Bellinati) e “Europa” (Sion).

 

“Num ritmo impressionante, Nelson Ayres, Sion, Bellinati, Rodolfo e Azael vêm fazendo com muita garra e competência a chamada música instrumental digerível por públicos mais amplos. A observação não é pejorativa. Pelo contrário”, elogiou o crítico João Marcos Coelho, na “Folha de S. Paulo”, após o lançamento do disco, em maio daquele ano. “Passam longe do jazz impessoal e redundante, que caracteriza a atual produção dos grupos instrumentais na música brasileira. O grupo não se limita às improvisações habituais, que mais parecem fabricadas em série, mas atua com o entusiasmo de quem busca novas fronteiras para o jazz”, observou Okky de Souza, na revista “Veja”.

 

Com ótima repercussão na imprensa nacional, o lançamento do primeiro disco permitiu que o Pau Brasil excursionasse por diversas cidades do Sul e do Sudeste do país, ao longo de 1983, ampliando seu público. E em fevereiro de 1984, o grupo iniciou sua segunda turnê europeia, realizando 20 apresentações na França, na Suíça, na Áustria e na Alemanha. A relação com o músico e empresário alemão Thomas Stöwsand, que por meio da agência Saudades Tourneen já organizava as turnês de Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e de conceituados músicos do jazz, foi essencial para que a carreira do Pau Brasil pudesse crescer no continente europeu.


Já no início de 1984, em sua primeira viagem ao Japão, o grupo fez seis apresentações em Tóquio. Logo em seguida, ainda em fevereiro, realizou a terceira turnê europeia, ampliando o número de países, com shows na Dinamarca, na Suécia e na Bélgica, além de retornar à França, à Áustria, à Suíça e à Alemanha. Tudo isso, lembre-se, ainda com apenas um disco gravado.

Buscando um caminho próprio

No primeiro semestre de 1985, quando já estavam conversando sobre o material a ser gravado para o próximo disco, os músicos do Pau Brasil enfrentaram sua primeira crise: uma polêmica interna que culminou com o desligamento de Azael Rodrigues.

 

“Saí do grupo por motivos estéticos. Eu acreditava num som planetário, enquanto eles queriam examinar nossas raízes musicais, mas até minha saída foi legal. Percebi a importância de se ter convicções sólidas, cresci como músico e ser humano”, avalia hoje o baterista, que foi substituído por Bob Wyatt, músico norte-americano radicado em São Paulo.

 

Consciente das expectativas que cercavam o segundo disco, Rodolfo Stroeter achava que o grupo precisava definir melhor seu caminho musical. “Gravar o segundo disco é sempre difícil para qualquer artista. No primeiro disco, você pode fazer o que quiser, mas, no segundo, você se define”, justifica. Decidido a formular um projeto, pediu a Nelson Ayres a chave de sua casa, em Visconde de Mauá, na serra da Mantiqueira, para onde viajou levando vários livros e uma reedição da modernista ‘Revista de Antropofagia’.

 

“Fiquei em Mauá por uns dias. Então tive a ideia de fazermos um disco que narrasse de maneira anárquica uma espécie de desenvolvimento formal da música brasileira. Escrevi o projeto e, ao voltar, apresentei ao grupo”, relembra Stroeter. Naquela época, os cinco ensaiavam com frequência, num salão alugado, no segundo andar de uma padaria, na esquina da Rua Inácio Pereira da Rocha com a Mourato Coelho, em Pinheiros.

 

A reação inicial dos colegas foi de surpresa, mas Stroeter conseguiu convencer o grupo a tentar realizar seu projeto. “Queríamos deglutir o jazz e regurgitar um som brasileiro. Ou seja: receber as influências musicais, transformá-las e tentar fazer uma música com a nossa identidade”, sintetiza hoje o saxofonista Roberto Sion, relembrando conversas que tinha com os colegas de grupo, naquela época.


A comunicação direta com as plateias, aspecto que diferenciava o Pau Brasil de outras bandas brasileiras do gênero, também era buscada de maneira consciente por seus integrantes. “Sempre me preocupei em fazer uma música que fosse próxima do público, que não soasse hermética”, afirma Nelson Ayres.

Novas plateias

O relativo sucesso do Pau Brasil no circuito jazzístico da Europa se deu de maneira mais rápida do que seus integrantes imaginaram, mas o investimento na carreira do grupo não se limitou ao plano de abrir novos mercados no exterior. Entre uma turnê internacional e outra, havia também uma ação constante do grupo no sentido de estabelecer contatos que lhe possibilitassem fazer mais shows pelo Brasil.

 

Esse esforço para levar a música do grupo a um número cada vez maior de pessoas passava também por apresentações em lugares que não costumavam veicular música instrumental ou jazz, como a inauguração de uma concha acústica, na Praça Santuário de Nazaré, em Belém do Pará, em 1984. Ou mesmo os shows do grupo em casas noturnas de São Paulo, como a Latitude 3001 ou a danceteria Rádio Clube, que já nem existem mais.

 

Numa época em que os festivais ainda eram relativamente raros no Brasil, o fato de ser considerado um dos melhores grupos da música instrumental e do jazz (elogio repetido com frequência na imprensa) também contribuiu para que o Pau Brasil estivesse sempre bem cotado a participar de eventos desse gênero, como a primeira edição do Free Jazz Festival, em São Paulo, em agosto de 1985.

 

“Nem tudo, porém, se resume a frustrações no Free Jazz Festival”, destacou João Marcos Coelho, em sua crítica publicada pela revista “Visão”. “O exemplo do Pau Brasil – com apresentação muitíssimo bem estruturada, que privilegiou corretamente o virtuosismo e a criatividade de seu melhor integrante, o guitarrista Paulo Bellinati – bem que poderia ser seguido pelos demais brasileiros em cena”.

 

No ano seguinte, em julho, o grupo se apresentou no erudito Festival de Inverno de Campos do Jordão, no interior paulista. Ao lado dos 106 músicos da Orquestra Sinfônica de Campinas, regida pelo maestro Benito Juarez, executou “Pindorama”, uma espécie de suíte que reunia composições extraídas do homônimo álbum do grupo, como “Jongo” (de Paulo Bellinati), “Só por Amor” (de Baden Powell e Vinicius de Moraes, em arranjo de Roberto Sion) e “Bachianas Brasileiras nº 5” (de Villa-Lobos, em arranjo de Nelson Ayres).


Àquela altura, começava a ficar evidente que o rótulo jazz já não se encaixava tão fácil quanto antes na música do Pau Brasil.

Mudanças

O Pau Brasil já existia há cerca de cinco anos, quando gravou seu primeiro disco, mas os intervalos entre os álbuns seguintes – o programático “Pindorama” (1986) e seu derivado “Cenas Brasileiras” (1987) – foram mais breves. Calcados na diversidade de ritmos e formas da música popular brasileira, como a modinha, o lundu, o maxixe, o samba, o choro, o baião ou a rancheira, esses discos são frutos do mesmo projeto estético.

 

Entre a gravação de um e outro, a substituição do norte-americano Bob Wyatt pelo gaúcho Nenê trouxe uma bagagem musical e uma intimidade com a rítmica brasileira que os bateristas anteriores do Pau Brasil não possuíam. Para um grupo que buscava mais brasilidade em sua música, poder contar com o ex-integrante dos grupos de Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal era, sem dúvida, um passo à frente.

 

“A chegada do Nenê foi triunfal. Ele trouxe suas composições e contribuiu para ‘abrasileirar’ mais ainda o grupo”, comenta Paulo Bellinati, ressaltando também que o estilo do baterista acrescentou mais intensidade sonora à música do Pau Brasil. “A entrada do Nenê redefiniu o grupo, inclusive em nosso potencial para crescer no cenário europeu”, acrescenta Rodolfo Stroeter, lembrando que, naquela época, Nenê já era um músico admirado na Europa, depois de viver alguns anos na França.

 

Logo após os shows de lançamento do álbum “Pindorama”, em maio de 1986, o grupo voltou ao continente europeu, para realizar mais uma extensa turnê: 40 dias por sete países, incluindo a estreia do quinteto na Itália. No entanto, um ano depois, nem o fato de ter acabado de gravar o álbum “Cenas Brasileiras”, também elogiado pela crítica especializada no Brasil, impediu que o grupo enfrentasse outra crise.

 

Roberto Sion, que já vinha se queixando da dificuldade de conciliar as turnês do grupo com suas outras atividades profissionais, anunciou que ia deixar o Pau Brasil, logo após as gravações. “Foi uma opção pessoal. Eu estava em outro momento da minha vida musical, queria fazer outras coisas. Achei que já tinha dado minha contribuição ao grupo”, justifica o saxofonista e compositor.

 

Para assumir os instrumentos de sopro no grupo foi chamado Teco Cardoso, que já havia substituído Sion em alguns shows, ocasionalmente. “Tocar com o Pau Brasil foi um grande ‘upgrade’ na minha carreira. Naquela época, isso era equivalente a tocar na banda do Egberto Gismonti”, compara Cardoso, que já entrou no quinteto para a temporada de shows de lançamento de “Cenas Brasileiras”, no Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo.


Nelson Ayres, que durante a turnê europeia de 1986 já chegara a comentar com Rodolfo que estava pensando na possibilidade de deixar o grupo, também se decidiu logo após a saída de Sion. “Naquela época eu estava fazendo um show com o César Camargo Mariano e muitos trabalhos em publicidade. Ao mesmo tempo, minhas filhas ainda eram pequenas”, justifica o pianista. “Não dava mais para seguir o caminho principal do grupo, que era abrir novos mercados fora do Brasil. Também havia um desgaste natural da relação depois de tanto tempo tocando junto. Resolvi deixar para lá”.

A reinvenção do grupo

O impacto provocado pelas saídas de Roberto Sion e Nelson Ayres praticamente desativou o grupo, tanto que ele nem chegou a excursionar pela Europa em 1987. Para complicar mais a situação, o baterista Nenê decidira voltar para a França, depois da temporada que passara no Brasil. Mesmo assim, o instinto de sobrevivência do grupo acabou prevalecendo.

 

“Rodolfo sugeriu que a gente começasse a compor junto. A ideia era criar um novo repertório, uma nova fase do grupo. Então decidimos convidar o Lelo a entrar. Assim começou a reinvenção do Pau Brasil”, conta o violonista Paulo Bellinati.

 

A escolha de Lelo Nazario foi, de certo modo, natural. Pouco antes, ele convidara Bellinati, Stroeter, Teco Cardoso e Nenê para participarem de seu álbum “Se…”, também lançado em 1987. “Aquela gravação ficou excelente”, relembra o tecladista e compositor paulista, que também já tocara com Stroeter e Cardoso, nas diversas formações do vanguardista Grupo Um.

 

“Como o Nelson tinha resolvido sair do Pau Brasil, Rodolfo me chamou. A ideia era fazer um som diferente com o grupo, que sempre foi mais ‘mainstream’. Rodolfo viu a possibilidade de introduzir no Pau Brasil um som mais próximo da vanguarda”.

 

Outro fato que estimulou a reativação do grupo foi um convite para gravar seu primeiro CD pela recém-inaugurada gravadora belga GHA. A iniciativa partiu do brasileiro Odair Assad, sócio do selo e violonista do conceituado Duo Assad, radicado na cidade de Bruxelas.

 

“O Rodolfo achou que seria legal utilizar elementos de música eletroacústica, o que eu fiz com sintetizadores misturados a sons indígenas. O resultado ficou diferente, com timbres muito bonitos”, recorda Nazario, ressaltando que, nas turnês que fez com o grupo pela Europa, tocavam em festivais e grandes casas de shows, com uma resposta bastante positiva do público.


Stroeter observa que a nova formação funcionou muito bem. “O Nenê tem uma forma mais livre de tocar, que casou com a do Lelo, e o Teco entende bem essa linguagem. Assim, o grupo passou a ter outra forma de organicidade e de unidade”, comenta o baixista, ressaltando que a demanda por shows do Pau Brasil, na Europa, foi essencial também para que ele sobrevivesse. “Eu trabalhava muito para isso, buscando o lançamento internacional de nossos discos, enquanto o Thomas Stöwsand vendia os concertos. Chegamos a fazer 35 shows em uma turnê”.

Um pé na vanguarda

A turnê europeia de 1988, que incluiu concertos na Inglaterra e na Bélgica, além dos países onde o grupo já se apresentava regularmente, permitiu que o Pau Brasil aprimorasse ao vivo a nova formação, com Teco Cardoso e Lelo Nazario. Serviu também para testar o material composto para o quarto álbum, o qual, embora tenha sido gravado e mixado em São Paulo, no início de 1989, não chegou a ser lançado no Brasil.

 

“Quando convidamos o Lelo, já era claro pra gente que o grupo ia sair de vez do universo do jazz. Com ele nos teclados, os improvisos seriam mais contemporâneos, teriam outras texturas”, comenta Paulo Bellinati. Em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, em fevereiro de 1989, durante a mixagem do álbum “Lá Vem a Tribo”, Rodolfo sintetizou o novo conceito do Pau Brasil: disse que o repertório continuava a ser de música popular brasileira, tocada de forma bastante livre, com “um tratamento não regional”.

 

A nova fórmula sonora – um pé na vanguarda, outro na música tradicional – agradou ao público europeu, tradicionalmente mais receptivo à linguagem da música contemporânea. Em 1991, o Pau Brasil chegou a fazer duas turnês por esse continente – uma em março e outra em julho. Por outro lado, quanto mais via o interesse por sua música crescer na Europa, o grupo passou, progressivamente, a se apresentar menos no Brasil.


“Lá fora, as pessoas babavam pelo som contemporâneo que fazíamos, mas aqui o grupo deixou de ser popular como antes. Durante a década de 90, as pessoas ainda estranhavam saber que o Sion e Nelson não estavam mais tocando com o Pau Brasil”, observa Cardoso, comparando a um exílio voluntário essa fase em que o quinteto praticamente desapareceu dos palcos e das lojas de discos do Brasil.

O som de Oslo

Em 1991, já com sua nova formação mais amadurecida, o Pau Brasil recebeu convite do músico e produtor francês Frédéric Pagès para gravar um CD por seu selo Divina Comedia. Como condição, Rodolfo Stroeter propôs que as gravações fossem realizadas no Rainbow Studio, em Oslo (Noruega), onde foram gravadas centenas de álbuns do cultuado selo europeu de jazz ECM, inclusive alguns de Egberto Gismonti.

 

“Foi uma aventura fazer esse disco, em Oslo, em apenas dois dias”, lembra Stroeter, que ficara decepcionado com o resultado sonoro do álbum anterior, “Lá Vem a Tribo”. “Para preparar a gravação do ‘Metrópolis Tropical’, ensaiamos como loucos e fizemos vários shows, no Brasil e na Europa, antes de ir para a Noruega, em julho de 1991. Saber que o grupo poderia soar tão bem, em um disco, foi uma descoberta”.

 

Pagès, que produziu esse álbum em parceria com Stroeter, conhecera o Pau Brasil ainda no início da década de 1980, quando passou um ano em São Paulo. “Eu tinha vontade de empurrar o grupo em outra direção musical”, conta o francês, assumindo ter sido influenciado por Hermeto Pascoal, em sua concepção musical. “Eu sabia que os músicos do Pau Brasil eram muito talentosos, mas achava que um olhar externo, alguém de fora do grupo, poderia enxergar um potencial que eles não percebiam em sua música. Faltava um pouco de ousadia”.

 

“Em meus discos, sempre gostei de contar uma história”, acrescenta o produtor, observando que “Metrópolis Tropical” foi idealizado como um retrato musical da cidade de São Paulo. Para isso, sugeriu a Lelo Nazario e Stroeter que captassem sons e ruídos, em ruas do centro da capital paulista, para serem utilizados como material sonoro do álbum. “A música desse disco não é tão fácil de ouvir, como a de outros discos do Pau Brasil, mas até hoje acho que esse é um projeto muito forte, que tem algo de especial”, avalia Pagés.

 

Quando ouviu o CD, já quase finalizado, Paulo Bellinati estranhou não encontrar, entre as faixas escolhidas pelos produtores, algumas composições de sua autoria – especialmente “O Pulo do Gato”, com a qual o grupo costumava encerrar seus concertos. Na época, o guitarrista não chegou a comentar esse fato com os colegas, mas hoje admite que esse episódio pesou bastante na difícil decisão de sair do grupo.


“Participei muito pouco desse disco como compositor e idealizador. Não fui chamado para a seleção do repertório, nem para a mixagem. Tudo isso ajudou a desgastar minha relação com o grupo”, revela. Por outro lado, ainda no ano de 1991, Bellinati teve a ótima surpresa de ver seu álbum dedicado à obra do violonista paulista Garoto ser lançado com grande repercussão nos Estados Unidos. “Foi um negócio que eu não esperava. Minha carreira de solista decolou muito forte naquela época. E as minhas composições passaram a ser tocadas por muitos violonistas”, comemora.

Situação difícil

Após a inesperada saída de Paulo Bellinati, em 1991, Rodolfo Stroeter, único remanescente da formação original, se viu numa situação tão difícil quanto a que já enfrentara quatro anos antes, quando Nelson Ayres e Roberto Sion deixaram o grupo. Mais uma vez, para manter o Pau Brasil, teve que lidar com a substituição de dois parceiros, já que o baterista Nenê também anunciou sua saída definitiva, para se dedicar a projetos pessoais.

 

“Na hora em que os interesses particulares aparecem, se não tiver um cara que finca o poste, qualquer grupo se dispersa. Desde o início eu tinha um ideário interno: queria fazer do Pau Brasil um grupo que fosse um núcleo de criação coletiva e pudesse tocar fora do país”, reflete hoje Stroeter, observando que sua capacidade de aglutinação ajuda a explicar porque foi o único músico presente nas diversas formações do quinteto durante estas três décadas.

 

O impacto provocado pela saída de Bellinati deixou em suspenso o futuro do grupo. “Era muito difícil substituir um músico como ele, um violonista e compositor com um coração tão brasileiro. Não havia alguém com essas características”, comenta Stroeter, que depois de alguns meses teve a ideia de convidar a cantora e violonista Marlui Miranda a se unir ao Pau Brasil.

 

“Ela não toca violão como o Paulo, mas tem aquela voz, aquelas flautas indígenas, que poderiam trazer outras características ao grupo”, relembra o contrabaixista, que na época estava começando a trabalhar com ela. Dessa parceria também resultou “Ihu – Todos os Sons”, álbum de Marlui, cuja produção ficou a cargo de Stroeter.

 

“Os músicos do Pau Brasil sempre foram muito urbanos. Por isso, minha história com o grupo foi um encontro do interior com o exterior, um encontro da Amazônia com o mundo povoado”, comenta a cantora, definindo sua colaboração com o grupo. “Naquela época, eu era uma espécie de mariposa no meio musical, mas eles perceberam meu esforço em olhar para o outro lado do Brasil. Entenderam que minha proposta tinha a ver com a do grupo”.

 

Marlui também participara como solista da “Ópera dos 500”, espetáculo concebido e encenado por Naum Alves de Souza, em outubro de 1992, no Teatro Municipal de São Paulo, para marcar os 500 anos do Descobrimento da América. Com música do Pau Brasil e Nelson Ayres, responsável também pela regência, essa montagem envolveu cerca de 130 artistas, entre cantores, bailarinos, músicos e atores.

 

Já a escolha do baterista Zé Eduardo Nazario, irmão de Lelo Nazario, com os quais Stroeter já tocara no Grupo Um, foi mais natural. “Perder o Nenê também foi meio traumático para o grupo. Ele era um grande companheiro, mas decidiu mudar de vida”, comenta o contrabaixista. “Como Nenê, o Zé Eduardo também tocou com Hermeto e Gismonti. E tem uma grande afinidade musical com o Lelo. Com essa formação, o grupo tinha menos comunicação com a plateia, mas muita sintonia interna. Fazíamos uma música muito densa, mas as performances eram bem integradas”.


Essa integração tinha a ver com a cumplicidade e a experiência musical que Stroeter e os irmãos Nazario acumularam quando tocaram juntos, uma década antes, no Grupo Um. “Mesmo em períodos de poucos shows, nós ensaiávamos todos os dias, das duas às sete horas da noite. Essa era uma prática que os meninos adquiriram quando ainda tocavam com o Hermeto, na década de 70, e que nós levamos adiante no Grupo Um”, ressalta Stroeter.

Maturidade

Em dezembro de 1993, logo depois de realizar mais uma longa turnê pela Europa, o Pau Brasil voltou a desembarcar em Oslo, dessa vez para gravar o álbum “Babel”, no Rainbow Studio. “Foi como jogar futebol com um time preparado, em um gramado muito bom, com a bola certa e o estádio cheio de torcida”, compara o saxofonista Teco Cardoso, observando que o grupo estava especialmente maduro, musicalmente, para aquela gravação.

 

No repertório registrado nesse disco, a faixa inicial, “Kã Kã” (dos índios Urubu – Kaapor), e as composições próprias “Uluri” e “Olho d’Água” indicam que Marlui Miranda já entrou no Pau Brasil exercitando suas habilidades de compositora e arranjadora, não só na condição de vocalista e instrumentista.

 

“Sempre achei que era importante expandir a visão que eu tenho da música indígena, de maneira que todos pudessem alcançá-la. Nunca pensei nessa música como folclore”, ela afirma. “Ao entrar no grupo, minha ideia era dobrar com a voz as frases do sax do Teco. Eu não seria uma cantora, mas outro instrumento. Acho que preenchi um nicho, porque eu podia tanto ser mais um instrumentista, tocando percussão, flautinhas ou violão. Para mim, tocar com eles era como visitar um parque de diversões”.

 

Por outro lado, a bagagem musical de Marlui – sua intimidade com a cultura indígena, em especial – também influenciou os parceiros do grupo. “Simultaneamente ao Pau Brasil, fiz um trabalho com ela em que fui apresentado ao universo mais sério da música indígena”, conta Cardoso, que desde então inclui as flautas indígenas em seu arsenal de instrumentos de sopro – recurso que o diferencia de outros saxofonistas e flautistas, na área da música instrumental brasileira.

 

“Eu já estava pesquisando a coisa dos pifes e das flautas de bambu, naquela época, mas não adianta só saber tocar um instrumento. Você tem que saber como ele funciona em termos de linguagem. Tive o privilégio de descobrir isso com a Marlui”, reconhece Cardoso.

 

Tanto entre a crítica musical da Europa, como na América do Norte, onde o álbum “Babel” foi licenciado pelo selo Blue Jackel, a repercussão foi ótima. “Igualmente cativante, lançado pelo Blue Jackel, é ‘Babel’, do Pau Brasil, uma onírica excursão jazzística e brasileira, colorida pelos agudos vocais de Marlui Miranda”, elogiou a revista “Billboard”, em abril de 1997, a exemplo de outras dezenas de resenhas favoráveis, publicadas na imprensa especializada internacional.

Reconhecimento internacional

Quase quatro anos após as sessões de gravação de “Babel”, em novembro de 1997, os integrantes do Pau Brasil receberam uma ótima notícia: a indicação do álbum ao Grammy, principal prêmio da indústria musical norte-americana, na categoria “melhor performance de jazz”. No mesmo páreo também concorriam grandes nomes desse gênero, como o pianista Oscar Peterson, o guitarrista Pat Metheny e o saxofonista Branford Marsalis.

 

“O melhor é que a gente não trabalhou para isso, não houve nenhum tipo de lobby. Os músicos, produtores e técnicos participantes da votação escolheram espontaneamente o nosso disco”, festejou Lelo Nazario, em reportagem publicada no “Jornal do Brasil”, dias depois.Talvez por ter percebido que a repórter desconhecia a obra e a carreira internacional do Pau Brasil (algo bem evidente no texto publicado), Nazario explicou que “Babel” combinava música indígena, composições próprias e instrumentação jazzística. E concluiu: “Não buscamos o exotismo, mas a mistura fica bem original”.

 

Já Rodolfo Stroeter, responsável pela produção de “Babel”, tinha dois motivos para comemorar: além da indicação do álbum do Pau Brasil, também festejou a seleção, na categoria jazz latino, de “Aldeia” – CD de estreia da big band paulistana Banda Mantiqueira, que ele também produzira pelo selo Pau Brasil.

 

“A indicação, por si só, já é uma grande vitória para o Pau Brasil, premiando um trabalho que já existe há quase 20 anos”, declarou Stroeter ao “Jornal da Tarde”, consciente do quanto era pequena a chance de um disco brasileiro, lançado por um selo independente nos EUA, conquistar o Grammy numa categoria jazzística.

 

Ironicamente, no momento em que os músicos do grupo desfrutaram essa demonstração do reconhecimento internacional à qualidade de sua música, o Pau Brasil estava desativado há meses. “Essa formação do grupo poderia até ter continuado, mas o Zé Eduardo se mudou de São Paulo, o Lelo passou a trabalhar muito mais em estúdio e a Marlui voltou a fuçar sua vida de índio. De todo jeito, nosso recado já tinha sido dado”, avalia Stroeter, que após o lançamento do CD “Babel” priorizou sua faceta de produtor, ao lado de diversos artistas, como Gilberto Gil, Joyce e Monica Salmaso.


O retorno

Em fevereiro de 2005, o jornal “Folha de S. Paulo” trazia a boa notícia para os apreciadores da música brasileira. Na resenha intitulada “A volta do Pau Brasil, um patrimônio nacional”, sobre a temporada de shows que marcaram o retorno oficial do quinteto, no paulistano Teatro Crowne Plaza, o crítico Arthur Nestrovski destacou, logo nas primeiras linhas, a “estupenda formação” do grupo, com os veteranos Nelson Ayres, Teco Cardoso, Paulo Bellinati e Rodolfo Stroeter, além do novato e talentoso baterista Ricardo Mosca.

 

“O teatro era pequeno mesmo para a energia incrível que o quinteto tira do nada, num segundo. Cada músico desses é um mestre, tocando com o misto de intensidade e desprendimento, em doses sucessivas ou combinadas, que só os que são realmente do ramo conseguem dominar. Em conjunto, agregam a isso uma voltagem de alegria que às vezes explode em humor, e outras tantas numa forma diferente de bem-estar, que só se pode chamar de musical”, observou o crítico.

 

Teco Cardoso ajuda a explicar por que a alegria e o humor são constantes nas performances do grupo. “Na música instrumental é muito comum se ver músicos que tocam para os outros músicos. Isso não existe no Pau Brasil. Nós tocamos para as pessoas, não temos que provar nada. Para poder divertir quem está à nossa frente, também temos que nos divertir”, afirma o saxofonista. “Sempre me preocupei em fazer uma música que fosse próxima do público, que não fosse hermética”, acrescenta Nelson Ayres.

 

Como em momentos anteriores, a rearticulação do grupo aconteceu de maneira espontânea. Em 2002, depois de atuar por cerca de uma década como regente da Orquestra Jazz Sinfônica, Ayres tinha voltado a tocar com regularidade, no bar Supremo, em São Paulo. Na noite em que ele uniu seu piano ao violão de Bellinati, surgiu a ideia de se reunirem novamente com Stroeter, Roberto Sion e Bob Wyatt, para tocar ao menos uma vez ao ano. Aliás, foi essa a formação do Pau Brasil que, em agosto de 2004, participou de um concorrido concerto com a Jazz Sinfônica.

 

Em junho de 2005, já contando com Teco Cardoso e Ricardo Mosca, formação que permanece até hoje, o Pau Brasil entrou em estúdio para gravar seu oitavo disco. A efeméride de 25 anos do grupo deu um tom retrospectivo ao álbum “2005”: o repertório escolhido privilegiou releituras de composições gravadas pelo quinteto, principalmente na década de 1980, que ainda permaneciam inéditas no formato CD.

 

“Esse é um Pau Brasil mais maduro e bem resolvido, sem o excesso de hormônios da juventude”, comenta Bellinati, com seu humor característico. Essa observação leva a pensar que o prazer de voltar a tocar, compor e conviver com os antigos parceiros superou os eventuais confrontos de ideias e concepções musicais, ou até os ressentimentos guardados ao longo do tempo, algo comum em qualquer relação humana.

 

Com espaço novamente garantido nas agendas de Ayres, Bellinati, Stroeter, Cardoso e Mosca, o Pau Brasil voltou aos palcos, nos últimos anos, realizando projetos que têm enriquecido a cena musical brasileira: como a extensa parceria com a cantora Monica Salmaso, que rendeu dois CDs e dezenas de shows, com releituras de canções de Chico Buarque, ao longo de 2007 e 2008; o “Concerto Antropofágico”, de autoria do grupo, apresentado com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, também em 2008; ou o criativo mergulho na obra de Villa-Lobos, que resultou em novos concertos e o álbum lançado em 2012.


A cantora e compositora Marlui Miranda, que se apresentou com o grupo, na década de 1990, diz que ainda se sente parte dele. “Uma vez no Pau Brasil, você é Pau Brasil sempre, nunca mais deixa de ser. Eu me sinto sempre perto deles, até porque as ligações de amizade se preservaram. O momento que vivi com o grupo foi muito rico, procuramos uma visão diferente do Brasil. Afinal, é isso que eles buscam: estão sempre à procura desses Brasis por aí”. Uma definição perfeita, por alguém que conhece o Pau Brasil por dentro e por fora.

USABrazil